Da mesma forma que médicos atuaram em práticas de
tortura durante o regime militar, equipes de saúde agiram em hospitais, e
até clandestinamente, para atender vítimas de tortura, perseguidos
políticos e suas famílias. Listar quem são os profissionais que colaboraram com
a ditadura e aqueles que se organizaram para atender quem precisava de cuidados
médicos é o que a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária (CVRS) busca trazer
à tona.
Para investigar a atuação de profissionais da
saúde, a CVRS lançou hoje (29) o núcleo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que
se somará aos demais oito núcleos espalhados pelo país.
A fundação, referência para médicos sanitaristas
em todo o país, foi vítima da intervenção militar e ficou marcada pelo episódio
chamado Massacre de Manguinhos. Na ocasião, em 1970, no Rio
de Janeiro, dez pesquisadores foram aposentados compulsoriamente. Eles faziam
oposição à ditadura e acredita-se que tenham sido denunciados pelos próprios
colegas.
“Quando foi feito um trabalho sobre os banidos de
Manguinhos e a volta deles, falaram como se fosse uma coisa abstrata, como se a
ditadura tivesse vindo aqui, entrado, só que teve um trabalho interno.
Provavelmente alguém que fez uma lista e apresentou aos generais os
'comunistas'”, disse a presidenta da comissão, Anamaria Tambellini. Por meio de
pesquisas em documentos da Fiocruz e do Arquivo Nacional, ela espera encontrar
respostas. Muitas testemunhas desse episódio, lamenta, estão mortas e outras
“desconversam”.
A CVRS também investiga as redes de profissionais
de saúde organizadas para atender perseguidos políticos. No Rio, informações
iniciais indicam o funcionamento de três delas . “Eram médicos que reuniam-se,
alguns até militantes, para atender gente machucada ou doente da
guerrilha, com febre tifoide e malária, por exemplo, e seus familiares. Eles [a
rede] encontravam lugares para as pessoas fazerem exames e serem atendidas até
em hospitais”, disse Anamaria.
A participação de agentes de saúde em práticas de
tortura e morte é outro tema da comissão. O desafio é encontrar os prontuários
de ativistas que passaram por hospitais militares, como o Hospital Central do
Exército, no Rio, onde morreu o ativista Raul Amaro Nin por espancamento após um interrogatório. Mais
seis ativistas contam histórias semelhantes. O Exército, no entanto, argumenta
que os documentos não existem mais, segundo a Comissão Estadual da Verdade, que
esteve na unidade, com as vítimas, na semana passada.
Para comprovar e registrar os casos, a principal
estratégia será tomada de depoimentos. Apesar de muitas testemunhas estarem em
idade avançada, a presidenta apela por relatos, que podem ser dados no site da comissão.
Segundo, Umberto Trigueiro, que integra o núcleo da Fiocruz, somente agora as
pessoas começam a superar traumas e a ganhar confiança para contar suas versões
sobre a ditadura.
“É neste momento também, com grande dificuldade,
que as comissões da verdade estão tendo acesso às instituições militares, indo
fazer reconhecimento dos locais de onde pessoas desapareceram ou foram vítimas
de tortura, segundo os relatos históricos”, disse.
Durante o lançamento do núcleo, o
pesquisador e ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
(Ensp), da Fiocruz, o médico Antônio Ivo de Carvalho relatou sua prisão. “Era
início dos anos 1970, a ditadura endurecia à medida que aumentava a
resistência”, disse. “Eu sou dessa época, quando movimentos estudantis de todo
o mundo saíram às ruas por mais direitos . Fui preso com mais de 12 alunos da
Faculdade de Medicina, [da Universidade Federal do Rio de Janeiro] e fiquei
seis meses no DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações do Centro de
Operações de Defesa Interna]”, revelou. No DOI-Codi vigoraram as práticas mais duras de tortura no
estado, como o pau de arara, pelo qual passou Antônio Ivo.
A previsão da CVRS é estender os trabalhos em
2015, mesmo após o fim previsto das atividades da Comissão Nacional da Verdade,
que entrega relatório final com recomendações ao governo brasileiro em dezembro
de 2014, conforme prevê a lei que criou o órgão.
Fonte: Agência Brasil
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